23.7.11

[em face dos últimos acontecimentos]

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS


[Sob a chuva de Oslo]
Imagina que uma gota de água
te cai no rosto como um sinal de sede
- como farás para devolver
ao céu esse momento?


(de Todas as Coisas, 1988)

22.7.11

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES


[...]
A aproximação a qualquer poema instaura o caos. Perdida circula a sabedoria dos homens entre esses elementos esfarelando-se e contudo muro sempre a mais avançadas incursões. Por isso, a voz do analisador surge por vezes como salvação. Ele possui os instrumentos que não ordenam o caos, mas que medem os curtos elementos que se dispersam ou amontoam. E fornece essas medidas, e as relações ténues (misteriosa gravidade unindo as palavras) que os elementos entre si mantêm. Deste modo, abre uma pista, e outra, e muitas mais ainda, e vai dizendo que milhares de outras vão ser possíveis mais tarde, que mesmo estas palavras talvez não sejam senão atalhos sem saída que é preciso, apesar de tudo, tentar.
São todos, porém, analisadores de uma obra. Ninguém a documenta melhor em si senão o próprio leitor, e o crítico nem de ajuda serve quando o entendimento já se conseguiu. Porque só didáctica é a função do crítico: ele apenas poderá ajudar quem não entende. Porque desde que o leitor tenha entendido, seja de que maneira for, a obra, essa é que é a obra e não a que outro entendimento lhe oferece. Em literatura não há erro, só a repetição se condena. Porque literatura fá-la quem lê e quem cria, ela não é só pertença de um dos lados desta dualidade. A obra não é literatura, quanto o leitor não é literatura. Literatura é a obra mais o ler a obra. Criação e leitura têm que se juntar para que seja literária a obra.
E daqui que faça o leitor a literatura. E daqui que seja má a literatura se a leitura o for, apesar de a obra ser boa. (Má, porém, não quer dizer errada, pois que erro não existirá nunca nestes campos: má é deficiente, é de nível inferior a).
Digam-me o que disserem, disto não me desconvencem. Nem me livram deste terror em que me alegro quando subitamente me vejo fazendo com a leitura desta obra a sua conversão em literatura; quando descubro no caos que ela é agora para mim um certo caminho, uma certa força orientadora; quando penso na possibilidade de muitos outros lhe assentarem mais completos instrumentos (quer de sensibilidade quer de conhecimento) e assim lhe descobrirem pistas mais claras e seguras.
E humildemente me preparo para avançar. Porque sei que ao fazer, com a obra, a literatura, eu o faço porque primeiramente a obra me criou e me deu uma sua medida; porque sei que lê a obra o leitor antes que o leitor a leia, e será ela própria quem indica ao técnico da leitura qual o instrumento mais certo para a tentativa. Humildemente avanço para a criação de modo a com ela recriar.


(excerto do posfácio a Sob Sobre Voz, de João Miguel Fernandes Jorge, 1971 / reproduzido em Os Dois Crepúsculos - Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A Regra do Jogo, 1981)

20.7.11

WILLIAM CARLOS WILLIAMS


UMA ESPÉCIE DE CANÇÃO


Que a víbora espere sob
as ervas daninhas
e a escrita
se faça de palavras, lentas e rápidas,
prontas ao ataque, aguardando pacientemente,
em vigília.

— e através da metáfora reconciliem
as pessoas e as pedras.
Compõe. (Ideias
só nas coisas) Inventa!
Saxífraga é a minha flor que fende
as rochas.


(in Antologia Breve, selecção e tradução de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 1995 - Gato Maltês / original de The Wedge, 1944)

19.7.11

BEN CLARK


Cuando desalojaron a Edmund Trebus
vivía en un rincón de su cocina
recluido.
Limpiaron el jardín
y llenaron camiones y camiones
con todos los objetos de la casa.
Unos dias después Heringey Council
recibió con sorpresa la demanda
de Trebus reclamando
una indemnización
por haberle robado todas sus posesiones.


(de Basura, editorial Delirio, 2011)


Quando o desalojaram Edmund Trebus
vivia num canto da sua cozinha
recolhido.
Limparam o jardim
e encheram camiões atrás de camiões
com todos os objectos da casa.
Uns dias depois o Haringey Council
recebeu com surpresa a demanda
de Trebus a reclamar
uma indemnização
por lhe ter roubado todos os seus bens.


[nota do Autor: Edmund Zygfryd Trebus (1918 perto de Danzig, Prússia – 2002 Londres). Padecia do Síndrome de Diógenes e tornou-se famoso através de um documentário da BBC sobre a sua vida, intitulado A life of Grime (uma vida de sujidade)]


(tradução minha)


18.7.11

[a Guerra Civil de Espanha começou há 75 anos]


PABLO PICASSO



Guernica, 1937
349×776 cm
Museo Reina Sofia, Madrid



ANTONIO MACHADO


SONETO


Odiosa mão traçou, oh minha Espanha
— vasta lira, ante o mar, entre dois mares—,
zonas de guerra, cristas militares,
em planícies, outeiros e montanha.

Manes do ódio e da cobardia
cortam a lenha de teus azinhais,
pisam bagos de ouro em teus lagares,
moem o trigo que o teu solo cria.

Outra vez — outra vez! — oh triste Espanha,
quanto se afoga em vento, em mar se banha,
joguete de traição, quanto se encerra

nos templos de Deus mancha o olvido,
quanto acrisola o íntimo da terra
oferece-se à ambição, — tudo vendido!


LEÓN FELIPE


HÁ DUAS ESPANHAS


Há duas Espanhas: a do soldado e a do poeta. A da espada fratricida e a da canção vagabunda. Há duas Espanhas e uma só canção. E esta é a canção do poeta vagabundo:

Soldado, tua é a fazenda,
a casa,
o cavalo
e a pistola.
Minha é a voz antiga da terra.
Tu ficas com tudo e deixas-me nu e errante pelo mundo...
Mas eu deixo-te mudo... mudo!
E como vais tu colher o trigo
e alimentar o fogo
se eu levar a canção?


PEDRO SALINAS


QUE PÁSSAROS?


O pássaro? Os pássaros?
Há um único pássaro no mundo
que voa com mil asas e que canta
com incontáveis trinos, sempre só?
São a terra e o céu espelhos? É o ar
espelho do ar, e o grande pássaro
único multiplica
a sua solidão em aparências mil?
(E por isso
lhe chamamos os pássaros?)

Ou não haverá um pássaro?
E são eles,
fatal plural imenso, como o mar,
bando inúmero, uma enorme onda de asas,
onde a vista procura e a alma quer
distinguir a verdade do pássaro único,
da sua essência sem fim, do uno belo?


VICENTE ALEIXANDRE


DESTINO DA CARNE


São, não é isso. Não olho
um céu do outro lado do horizonte.
Não contemplo uns olhos tranquilos, poderosos,
que acalmam as águas ferozes que aqui bramam.
Não olho essa cascata de luzes que descem
de uma boca até um peito e umas mãos suaves,
finitas, que este mundo encerram, entesouram.

Por toda a parte vejo corpos nus, submissos
ao cansaço do mundo. Carne fugaz que porventura
nasceu para ser chispa de luz, para abrasar-se
de amor e ser o nada sem memória, a formosa
redondez da luz.
E que está aqui, está aqui, flacidamente eterna,
sucessiva, constante, sempre, sempre cansada.

É inútil que um vento distante, com forma vegetal, ou uma língua,
lamba devagar e lentamente o seu volume, o aguce,
o lime, o acaricie, o exalte.
Corpos humanos, rochas cansadas, pardos vultos
que à beira-mar consciência sempre
tendes de que a vida não acaba, não, e se transmite.
Corpos que amanhã repetidos, infinitos, rolais
como uma espuma lenta, desiludida, sempre.
Sempre carne do homem, sem luz! Sempre rolados
desde além, de um oceano sem origem que envia
ondas, ondas, espumas, corpos cansados, orlas
de um mar que não se acaba, sempre ofegante em suas margens.

Todos, multiplicados, repetidos, sucessivos, amontoais a carne,
a vida, sem esperança, monotonamente iguais sob os céus foscos que impassíveis se herdam.
Sobre esse mar de corpos que aqui brotam sem trégua, desabrocham
nitidamente e, mortais, ficam nas praias,
não se vê, não esse rápido batel, ágil veleiro
que com quilha de aço, rasgue, torça,
abra sangue de luz e impetuoso fuja
rumo ao fundo horizonte, rumo à origem
última da vida, ao extremo do oceano eterno
que, humanos, espalha
seus corpos cinzentos. Para a luz, para essa escada ascendente de brilhos
que de um peito benigno para uma boca sobe,
para uns olhos enormes, totais, que contemplam,
para umas mãos silenciosas, finitas, que prendem,
onde cansados sempre, vitais, ainda nascemos.


FEDERICO GARCÍA LORCA


MORTE DE ANTONITO EL CAMBÓRIO


Vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.
Vozes antigas que cercam
voz de cravo varonil.
Cravou sobre as suas botas
dentadas de javali.
Nessa luta dava saltos
esfregados de delfim.
Banhou com sangue inimigo
sua gravata carmim,
mas eram quatro punhais
e teve que sucumbir.
Quando as estrelas espetam
rojões na água de cinza,
e quando os novilhos sonham
com verónicas floridas.
vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.
*
António Torres Herédia,
Cambório de dura crina,
moreno de verde lua,
voz de cravo varonil:
Quem te roubou tua vida
perto do Guadalquivir?
Meus quatro primos Herédias
filhos de Benamejí.
O que em outros não invejavam
já o invejavam em mim.
Sapatos cor de corinto,
e medalhões de marfim,
e esta pele amassada
com azeitona e jasmim.
Ai Antonito el Cambório,
digno duma Imperatriz!
Lembra-te agora da Virgem,
que estás prestes a partir.
Ai Federico Garcia,
procura a Guarda Civil!
Já meu tronco se quebrou
como uma cana de milho.
*
Três golpes de sangue teve
e agonizou de perfil.
Viva moeda que nunca
se haverá de repetir.
Um anjo pálido põe-lhe
a cabeça num coxim.
Outros de rubor cansado
acenderam um candil.
E quando seus quatro primos
chegam a Benamejí,
vozes de morte cessaram
perto do Guadalquivir.


DÁMASO ALONSO


DURA LUZ DE MORTE


A morte não tem passadas
cautelosas, nem gadanha.
A morte é a luz. Que funda
a luz do verão, amada!

Como se adensa nos hortos
que com a sesta se inflamam!
Como o conhecem as rosas!
Botão que desponta, canta-o.

Que profundeza de luz!
Massa de chumbo inflamada,
sobre o sonho da existência,
como pesa, como ameaça!

Quanta sombra num verão,
na luz de um verão! Oh quanta
morte nessa sombra fúlgida,
inexorável, diáfana!

Tal como um cão acossado,
meu coração bate em ânsia
— ardente ferver de terra —
sobre terra, sob a brasa

do céu. Do céu absorto
— rosa de cristal estática —
que vai estalar em estrias
de luz. Pára, luz, aguarda!

Dura terra, terra mãe,
protege-me com teus ramos,
encanta-me com tuas flores,
dilui-me nas tuas águas!

Pois dá inda sombra o álamo
e ainda há flores na sarça,
e a água brota e dois olhos
mudos — ai, amor — me falam.

...Contudo, arestas da tarde
já estalam em cal árdua,
fogos brônzeos, clarins híspidos
e lanças incendiadas.

No fundo da minha angústia
soam trombetas de caça!:
hirtas almas, nos outeiros,
fogem, fogem para nada...

Piedade! Afasta, terra,
minha destruição, olha, cantam
ainda as aves junto ao álveo,
trémulo o vento nas canas!

Nas ramarias dos álamos
— ora tremem, ora param —
há entre jogos de brisa
um frenesi de esperança.

E, amor, em teus tristes olhos,
que terna luz tamisada,
ai como me chama a vida,
que imperiosa me chama,

enquanto desfia a acéquia
— canavial, harpa e flauta —
seu doce engano de música,
piedoso engano! Graças,

álveo, amor, árvores! Jovem,
a minha vida, embalai-a
como a uma folha pequena,
como uma fibra de nada.

Que durma bem! Que não veja
como, soturna, prepara
esses ocres funerais
a fosca luz acerada


RAFAEL ALBERTI


BALADA DO QUE NUNCA FOI A GRANADA


Que longe por mares, campos e montanhas!
Já outros sóis olham minha cabeça branca.
Nunca fui a Granada.

Minha cabeça branca, tantos anos perdidos.
Quero achar os velhos, apagados caminhos,
Nunca vi Granada.

Dai à minha mão um ramo de luz esverdeado.
Uma rédea curta e um galope largo.
Nunca entrei em Granada.

Que gente inimiga povoa seus adarves?
Quem os claros ecos livres de seus ares?
Nunca fui a Granada.

Quem seus jardins hoje aprisiona e põe
cadeias à fala que sai de suas fontes?
Nunca vi Granada.

Vinde vós, que nunca fosteis a Granada.
Há sangue caído, sangue que me chama.
Nunca entrei em Granada.

Há sangue caído do melhor irmão.
Sangue pelos mirtos e água dos pátios.
Nunca fui a Granada.

Do melhor amigo, nas murtas distantes.
Sangue pelo Darro, pelo Genil sangue.
Nunca vi Granada.

Se altas são as torres, alta é a coragem.
Vinde por montanhas, por campos e mares.
Entrarei em Granada.


MANUEL ALTOLAGUIRRE


ELEGIA A FEDERICO GARCÍA LORCA


Esqueço-me de viver se te recordo,
reconheço-me como pó da terra
e incorporo-te em mim, tal como faz
a parte mais próxima de tua campa,
essa terra insensível que suplanta
o amoroso afã de teus amigos.

Acabada tua vida, permanece
com seu total contorno desenhado:
não há porta que ao futuro te conduza.

A árvore de teu nome floresceu
numa incalculável primavera.

A morte é perfeição, acabamento.
Somente os mortos podem ser nomeados.
Nós que vivemos, não possuímos nome.

Os fundeiros míticos da fama
atiram os cantos do teu nome ao mundo
e o lago da vida abre seus olhos
com pálpebras de vidro intermináveis:
Não há montanha ou céu, não há planície,
que em círculos concêntricos não aumente
o eco de teu nome iluminado.

Não é dor fraternal, ou pena humana,
é parte, meu pesar, do sentimento
que faz das estrelas pensativas
flores sobre a noite que te cobre.
Escrevo-te estas palavras separado
do quotidiano sonhar da minha vida,
escrevo de um astro distante onde sofro
tua perda irreparável soluçando.


(in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, selecção e tradução de José Bento, Assírio & Alvim, 1985 - documenta poetica)

17.7.11

[há dias, assinalando o aniversário de nascimento de Neruda, coloquei aqui poemas seus traduzidos por vários Poetas portugueses. Escapou-me a tradução que Couto Viana fez de As Pedras do Céu, de que fica aqui um poema.]

PABLO NERUDA


XX


É áspera a americana cordilheira,
nevada, hirsuta e dura,
planetária:
o azul dos azuis é ali que jaz,
o azul solidão, azul secreto,
o ninho do azul, o lápis-lazúli,
o esqueleto azul da minha pátria.

A mecha arde, cresce o estalido
e esmigalha-se então o peito à pedra:
depois do dinamite é ténue o fumo
e sob o fumo o ossamento azul
e os terrões de pedra ultramarina.

Oh catedral dos azuis enterrados,
pequeno abalo de cristal azul,
olho do mar coberto pela neve
uma outra vez à luz voltas da água,
ao dia, à pele clara
do espaço,
ao céu azul volta o terrestre azul.


(de As Pedras do Céu, in Por Outras Palavras, traduções de António Manuel Couto Viana, Vega, 1997 / original: Las piedras del cielo, 1970)