2.5.09

[para uma antologia de bicicletas - 15]

JOÃO CAMILO

DE BICICLETA


Como se o teu olhar me perseguisse,
eu preocupava-me em executar da maneira mais perfeita
todos os gestos. Via-me de fora como tu me verias
se fosses atrás de mim quando pedalava na bicicleta,
sentada no banco confortável de um automóvel.
O rio à direita da estrada tinha certa beleza
e as árvores, como sempre, faziam do asfalto preto por onde eu ia
um caminho em que apetece passear ao fim da tarde.
Enquanto me olhavas ias conversando para o lado
com os teus companheiros de viagem. O cabelo
loiro sobre os ombros iluminava o teu rosto à janela
e aqueles que te viam passar ficavam a pensar em ti.
eu lá ia, tranquilo e inquieto a pedalar,
convencido de que ao ver-me sem esperar assim ali
descobrias mais duas ou três razões para me amares.
Não olhava para trás para que tu não te escondesses
e em cada pedalada deixava a atenção
com que poderias falar-me e eu escutar-te.



MEMÓRIA DE RUY BELO

Madrid está deserta do teu corpo, só os fantasmas
do desejo se digladiam ainda ao sol das praças.
Era tão curta a distância entre a eternidade
e a luz nas esplanadas dos cafés, na pedra dos edifícios?
O amor, ave desencontrada das estações, acena ainda
nos olhos das raparigas de braços nus. E tu,
morto mais discreto da pátria, adormeceste
sem ter beijado a mulher e os filhos, longe
para sempre das romarias e do mar.

(de A mais nobre das artes, editorial Caminho, 1991)



(…) quando jogava futebol na equipa da Faculdade de Letras de Lisboa nunca joguei a guarda-redes, em geral jogava a defesa direito, às vezes ao lado do Ruy Belo ou do Arnaldo Saraiva, do Moreira, do Madeira, do Carlos Correia, etc.; e gostava muito de arrancar por aí adiante a caminho da baliza adversária. Uma vez, depois de vários passes com o Pissarra, um puto cheio de talento, fui rasteirado na área adversária e tivemos direito a uma grande penalidade. Imagino que o Pissarra a deve ter transformado em golo. Velhos tempos. (…)

(daqui)

1.5.09

JOÃO CAMILO

OS POETAS SÃO SERES DOENTES


Muitas vezes os poetas confundiram a poesia
com a arte de cantar. E outras vezes
procuraram dolorosamente um ritmo digno das histórias
da literatura, esses monumentos ao tédio.
A rapariga que atravessava a rua à sombra dos plátanos
com a simplicidade inquietante da sua beleza fê-los sofrer,
mas em vez de falar do segredo eterno das suas pernas
e do perfil pesado dos seus seios nus debaixo da camisa aberta
esforçaram-se por esconder a perturbação e o pressentimento da morte
no castelo de mármore barroco dos símbolos e das metáforas.
Para aquele que não sabe olhar todas as tardes são a mesma tarde
e para quem não sabe ouvir todos os sons se assemelham ao ruído.
As pessoas passavam. Homens e mulheres que não iam a lado nenhum
e no entanto concentravam o espírito cheio de perguntas
nas pedras amarelas do passeio. Rapazes e raparigas
sentavam-se nas esplanadas dos cafés. Tinham os olhos
tão limpos. Neles podia reflectir-se
o universo inteiro e observando-os de longe
adivinhava-se que as palavras com que tentamos orientar-nos
no nevoeiro da existência são todas excessivas e até erradas.
E no entanto eles ignoravam as árvores e as casas, só sabiam
olhar para si mesmos. Como se um lume oculto
os subjugasse e faziam pensar na borboleta que queima as asas
na claridade brutal da lâmpada eléctrica. A tarde avançava.
Os poetas são seres doentes e têm medo da vida. Sem fim
apagam as luzes para que o quarto fique às escuras. As coisas
ferem-nos, pesam-lhes excessivamente no espírito. E eles preferem
a espessura protectora das sombras. É tão injusto ter de viver
para além da infância e da adolescência. Mas pelas persianas de madeira
o ar e a música da rua não cessam de querer entrar. E de longe
as montanhas e os rios enviam o cheiro de arbustos, de pinheiros.
Para resistir os poetas começam a cantar. Ou enterram debaixo das palavras
a violência demasiado quotidiana, excessivamente selvagem do mundo.



REALIDADE

Já não sei por que razão
escrevi o meu primeiro poema.
Os sentimentos «delicados» alguma vez me interessaram?
Nem eles nem a «beleza», verdadeiramente.
Foi por isso talvez que uma tarde me sentei num banco
e enchi a primeira página de palavras.
O sentimento poético no meu caso não é
exactamente o sentimento poético no caso dos outros.
Mas nesse tempo eu ainda não tinha aprendido
a respirar segundo o meu próprio ritmo.
Toda a gente viu o que fez um dos irmãos Marx
à roupa que ficou de fora da mala fechada:
pegou na tesoura e cortou-a.
Ou era o Charlie Chaplin e estou a confundir?
Todo o meu esforço tem consistido
em fazer entrar na mala o que lá não cabia.
Realidade, o máximo de realidade que for possível,
tem sido a ideia que me tem guiado.
E nada de comover-se com as palavras,
opor-se sem piedade aos desejos que elas têm
de ser aristocratas entre a plebe anónima da frase.
Tratei-as a todas segundo o princípio da igualdade,
em todo o caso esforcei-me por isso.
Não nego que tenho tido preferências e obsessões;
mas a privilegiada de um verso confunde-se
no seguinte com a sua sombra na parede.
A sociedade deve-me muita coisa e eu devia-lhe isto:
estar-me nas tintas para as suas estátuas,
para o oiro e a prata que ela distribui.
Não me ajoelharei diante de altar nenhum.
Quanto às palavras, trato-as como o domesticador
ao tigre e ao leão que depois do espectáculo
regressam humildemente às grades da jaula.
Escrever poesia é a minha maneira de participar
na luta das classes.
A tentação da beleza e os sentimentos delicados afogo-os
na velocidade do verso democraticamente longo.
E o «transporte» permite-me viajar de um verso
para o seguinte sem perder de vista a luz
ao fundo do túnel. Um subterfúgio ainda, evidentemente,
para meter dentro da mala pequena
o excesso de roupa que apesar de tudo possuo.
A César o que é de César e a cada palavra
o papel que é o seu. Se alguma
tem de brilhar, que brilhe; mas não contem
comigo para me prostrar aos seus pés embevecido.
De qualquer modo poucas ou nenhuma valem o bastante
para ocupar sozinhas o pedestal do verso inteiro.
Penso estas coisas e convenço-me
de que tenho vindo a abrir caminho com a proa
do barco da minha pouca ou nenhuma estima
pelos sentimentos dos que nos oprimem.
Há dias, porém, não li em Theodor Adorno
que o artista se confronta simultaneamente
aos materiais da sua arte e à sociedade?
Não escrevemos o que queremos escrever,
não cantamos o que nos apetece cantar;
escrevemos e cantamos as palavras e a música
que a sociedade, insidiosa, deixou ao nosso alcance.
Do estilo e da sintaxe é ela que decide.
É provável que eu não o ignorasse;
mas fiquei um pouco desiludido.
A liberdade que eu pensava que tinha conquistado
era apenas aquela que me tinham imposto.
Perdera tempo a reflectir e a lutar por ela,
exercitara-me em estratégias e manhas subtis;
mas em vez de alargar os limites da experiência,
tinha ficado no mesmo sítio a marcar passo.
Tudo estava previsto de antemão. Riam-se de mim:
não pus no papel o que senti, não disse o que pensava,
não me opus tanto como o imaginava
à ditadura de tudo o que não sou;
só falei daquilo de que podia falar
E o censor não era eu? Queria que me lessem.
Devo ter esperado que me amassem pelo que escrevia.
E não tive asas, limitei-me
a andar de gatas à volta da mesa
a que tinha presa a perna com um cordel.
Se é verdade que lutei contra o desejo
que tem as palavras de se lhes dar importância,
não posso negar que me servi da tesoira salvadora:
borracha que apaga o que não cabia na página do caderno,
cortina que esconde o que não fazia parte do cenário.
Ter preferido o país democrático da frase
à monarquia absoluta da palavra
não pôde livrar-me dessa insuficiência.
Este poema, pelo menos, podia ser o início de outra era.
Mas calha mal. Já passa das duas da manhã
e arrefecem-me os ossos na sala onde entra o vento.
Além disso, antes de ser definitivamente mal-educado
tenho de dar algumas provas mais de respeito e consideração.
É por isso que o poema vai terminar aqui:
o poeta, coitado, está cheio de sono,
tem a cabeça baralhada por causa do Theodor Adorno
e raciocinará mais tarde sobre a essência da poesia.

(de A Mala dos Marx Brothers, editorial Caminho, 1988)

30.4.09

MANOEL DE BARROS

O VENTO


Queria transformar o vento.
Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto.
Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física
do vento: uma costela, o olho...
Mas a forma do vento me fugia que nem as formas
de uma voz.
Quando se disse que o vento empurrava a canoa do
índio para o barranco
Imaginei um vento pintado de urucum a empurrar a
canoa do índio para o barranco.
Mas essa imagem me pareceu imprecisa ainda.
Estava quase a desistir quando me lembrei do menino
montado no cavalo do vento – que lera em
Shakespeare.
Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos
prados com o menino.
Fotografei aquele vento de crinas soltas.


(de Ensaios Fotográficos, editora Record, 2000)
JOÃO CAMILO

AS CRINAS DO VENTO


O vento: música ou murmúrio da árvore.
Encosta a obsessão à parede branca dos quintais.
Vento de mar? E jovem leva a nuvem.
Os sinos de bronze, o cimo das searas:
viver é brusco, tão incerto.
E a minha mão, desabituada de sentir que toca
e é gesto
e me deixa possuir,
a minha mão quer a janela aberta. O vento não tem,
não, não tem
crinas.
Nem as costas luzidias de cavalo ou égua.
Áspero,
vidro partido espetado na terra.
Os dentes de uma serra,
espaço de repouso e cume que agride.
Pôr a mão em tanto
e sem respirar
quando parecia que era tarde e apenas
hora de dormir?



ABRIL PROVENÇAL

A noite de primavera imobilizada na sua quietude.
O ar quase quente, o azul do céu entre os ramos das árvores,
enquanto na avenida as pessoas não paravam de passar.
Um rapaz em tronco nu deitava-se nos vidros partidos,
um violino e uma flauta cantavam na esquina de uma rua.
Os braços despidos das raparigas, os olhos com que elas olhavam,
com sombras azuis na pele tão jovem das pálpebras.
E debaixo das camisas os seios nus como os rebentos nas árvores
iam surgindo do inverno, incitavam-nos a ver no verão
o tempo da nossa plenitude. A noite: horas que o sol
usa para colorir frutos distantes de outros continentes.
E raparigas aproveitam para sorrir nas margens desses rios,
no centro dessas cidades, às janelas entreabertas sobre a manhã.
Concentrada na perfeição em que se fixara,
a cor azul, como a ausência de vento, dir-se-ia eterna,
destinada a noite a não viver senão certa idade jovem,
a morrer adolescente nos braços trágicos de uma luz brusca.


(de Para a Desconhecida, Fenda edições, 1983)

29.4.09

[Quis o acaso que eu lesse este poema a bordo do autocarro suburbano, quando subia (ronceiramente) do viaduto Duarte Pacheco para Monsanto. Nunca tinha sentido tão explicitamente que ler um texto é, também (sempre?), fazer o percurso inverso àquele que o Autor fez.]

JOSÉ MÁRIO SILVA

citröen 2 cv


Para o João Almeida

Na descida de Monsanto
para o viaduto Duarte
Pacheco, o ponteiro
da velocidade desaparecia
completam ente, perdido
para lá da marca laranja
dos 120 quilómetros por hora.
O carro trepidava e tudo à nossa
volta – o motor em alta rotação,
as estrelas através da capota aberta,
a silhueta de Lisboa, as infinitas
bifurcações da juventude - tudo
à nossa volta era uma vertigem.

(de Luz Indecisa, Oceanos, 2009)
LUDWIG VAN BEETHOVEN

Piano Concerto No 2


(Berlin Philharmoniker, conduzida por Claudio Abbado; Solista: Mikhail Pletnev)*



(continua aqui, aqui e aqui)


JOÃO CAMILO

NÚMERO DOIS


Beethoven, concerto número dois para piano.
Com um canivete corta-me devagar por dentro
a parte da alma mais encostada à carne.
O prazer que a Camões também doía e as palavras
de depois de inventá-lo. O sol que brilha e ilumina
o verde das primaveras que nesta se repetem. Enu-
merar: como quem coloca cada som depois do outro
e parte para a solidão. Uma lâmina pequena corta-me
por dentro das próprias veias no meu corpo
desconhecido as mais pequenas fibras. E sei que
existem e é delas que se extrai
a revolta com que vou nascendo para
ver-me de pé enquanto reaprendo
a não esquecer que um dia finalmente
tudo terá passado. E esta aventura
de estar aqui hoje há-de perder-se
no tempo que consome tudo e nos consome
a nós no uso de nós mesmos. Afeiçoarei o meu
corpo cada dia mais definitivamente à imagem
da pequena morte que nos chega que toca
os olhos na retina os ouvidos na membrana
do tímpano e passa a circular no sangue com a
embriaguez. Assassínio lento de mim mesmo,
Claudio Arrau pianista chileno vai
pontuando o tactear da lâmina
no meu corpo e eu sentado contemplo as cores
dos objectos à minha volta e vou dando pelo
espanto de assistir à passagem de mim
mesmo pelo que me rodeia.



O CAMPEÃO DE ROLAND GARROS

Esta tarde sou eu o homem da raqueta mágica.
A minha juventude resplandece no terreno central
de Roland Garros. Ergo o braço vigoroso, olho fixamente
o meu adversário ao fundo sobre a linha a saltitar.
Lanço a bola ao ar e bato com força, vejo-a rasar a rede,
quem poderia pará-la e devolver-ma perigosamente?
O público aplaude e eu limpo o suor do rosto com a mão,
tomo posição de novo e vou bater a bola com a mesma convicção.
A minha perna esquerda suporta o peso do corpo, a mão direita
segura na raqueta com energia e o braço corta o ar veloz
enquanto o ruído seco da bola batendo na terra soa no silêncio
como a música da perfeição. Mais quinze pontos. Dentro de pouco
tempo tenho mais um jogo ganho. Para isso passei as manhãs em exercícios,
me privei do álcool e do fumo, das distracções fugazes e inúteis.
Se o olhar das raparigas não me escapa, nem os belos dentes
brancos que elas têm, nem os seus braços nus, os seios redondos,
a minha preocupação maior é respeitar o andamento deste concerto,
responder ao meu adversário com o rigor dos gestos que surpreendem
e causam admiração. Dói-me como o problema do desemprego
nas sociedades modernas escravas do lucro e da vontade de produzir
a bola mal batida que sai fora das linhas brancas deste jogo.
Tem-me atormentado noites inteiras a devolução defeituosa
que fiz de uma bola fácil que me enviara um jogador medíocre.
Às vezes impede-me de comer a sensação que tenho de não poder
colocar todas as bolas no interior do rectângulo. Mas o homem
é um ser imperfeito apesar de todas as horas de aprendizagem,
de todos os minutos passados a aperfeiçoar os gestos mais simples.
Erros de cálculo, a bola que devia passar a rede e não passou,
ou a que vai sair ligeiramente ao lado dos limites fixados.
Esta tarde, porém, a sorte sorri-me. Ou antes: os meus gestos
são de uma perfeição à medida da minha lucidez e energia.
A consciência que eu tenho de dominar os elementos inebria-me
e em cada corrida que dou crescem-me asas e aumenta
a minha confiança nos limites e capacidades humanas. Estou
contente comigo mesmo. Não sou vaidoso, estou apenas satisfeito
com este rigor. O meu adversário é obrigado a deslocar-se
de um canto do terreno para o outro a toda a velocidade. Às vezes,
claro, não chega a tempo. Terá trabalhado tanto como eu, passado tantas horas
a ensinar o corpo a obedecer-lhe, a não traí-lo? A atenção,
a enorme concentração é que explicam em grande parte a minha precisão.
Conheço também as manhas e manias das bolas que batidas
vêm a rodar sobre si mesmas ao encontro da minha raqueta.
O meu jogo de pernas, segundo os entendidos, assemelha-se ao de um
jogador de golfe, ou de hóquei, ou de boxe. A mim parece-me
que sobretudo é idêntico ao gesto do violinista que percorre a corda
e cria o som de um rigor e intensidade que penetram
em todas as fibras do espírito. A minha única vaidade é estar contente.
Bem sei que à margem deste campo desportivo (com gente sentada nas bancadas
a seguir atentamente o mais pequeno dos meus gestos) existem
outras coisas. O desemprego dos jovens, a ameaça atómica, a vida absurda
nas cidades modernas, porém, não me são desconhecidos. Sei também
que a beleza é um pássaro excessivo ao lado da miséria e dos defeitos físicos.
Ao ver-me agir, porém, e ignorando quanto da minha imperfeição se esconde
na facilidade com que executo estes gestos rituais e calorosos,
quantos não terão sentido por momentos que a força secreta
que governa o nosso destino se podia finalmente libertar?
Nunca discuto a decisão do árbitro, mesmo se o público assobia,
mesmo se vi a bola cair dentro ou fora ao contrário do que ele diz:
o jogo é humano e os homens erram, tenho muitas bolas
e toda a tarde para provar o meu talento e a minha força.
É altura de pôr em jogo bolas novas. Vejo-as brancas
a saltitar na terra vermelha e tomo-lhe o peso, sinto
na mão a aspereza nova dos seus pêlos. Ah, ser sempre jovem.
Bato-as com força e o meu adversário do outro lado da rede
não consegue resistir durante muito tempo à pressão que eu exerço.
A dado momento acaba por enervar-se, pensa que vai surpreender-me,
e lança a bola para lá do risco. Paço depressa quarenta pontos.
O jogo está muito perto do fim. Admiro o jogador
que me faz correr a mim e me obriga a ser inteligente,
é ele o instrumento da minha glória e do meu contentamento.
É ele, também, quem me impede de atingir enfim a perfeição divina.
É por isso que não sorrio por fora, que nem sequer deixo o entusiasmo
ganhar-me muito por dentro? Continuo sem perturbar-me
a executar da maneira mais austera esta partição.


(de Na Pista Entre as Linhas, Gota de Água e Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982 - Plural)


* Aparentemente, o Concerto No 2 é o único de Beethoven que não se encontra no YouTube interpretado por Claudio Arrau, o intérprete referido no poema.

28.4.09

Amanhã.

Livraria Pó dos Livros, 19h00.
Jorge Silva Melo apresenta o livro (em jeito de conversa).
Miguel-Manso lê alguns poemas.
JOÃO CAMILO

NAS ALÇAS DA MEMÓRIA


Chovia. Na minha memória.
E eu chorava. Mas não chorava.
Lágrimas ou as saudades das manhãs no campo
eu sou um ser remarcavelmente com saúde.
A água corria. Na torneira estornecia.
Ou entornava-se ou destorneirava-se
a mim é que ninguém vinha dizer
os hinos que se escutam nas banheiras
nas tardes em que o sol aquece porque sim. E porque não.
E amarela e vai descolorindo. As paredes.
Dos conventos. Os muros das adegas das aldeias
as torres das igrejas nas planícies. Histórias.
A minha infância que me caía ou escorria
não sei se dos meus pés se do tecto branco
da casa branca onde então seguia. Vivia
e ia morrendo. Mas vivia. Dava por isso
quando punha o cinzeiro na frente da mulher
em quem as minhas mãos procuravam recordar-me
de qualquer coisa em que não pensavam.
Se estar vivo é isto de tão triste e não saber.
Se saber é triste de tão isto e não estar.
Que sei lá. Quem o dirá ou o diria
a mim que com olhos verdes me arrependo
me arrepenteio nos cabelos dos meus dias? Assim?
Assim. Há caranguejos e outras banalidades
há a mesa em que me apoio e os prédios ao lado
de que serviria pô-los para cima? Assim.
É assim que se dá conta do olhar com óculos
que do buraco de madeira cavado no vazio
me lançava as chispas com que se misturam
à noite em casa os ócios e o desejo. E a raiva.
Mas quem dessa camisa com suor na manga
havia de extrair o papel branco
com o poema quase redigido? Uma camisa
é uma camisa. Nada a fazer. Constatar
que um homem dorme quando o sol circula
nas alturas pouco vertiginosamente. E a pressa.
E o binóculo. E morrer e pedir e esquecer
e esmolar com que se esmurre a cara
daqueles que nos têm ofendido. Que são
muitos. Eu estava e estive
tenho estado e revejo que estarei
para suportar o peso ainda desses anos
em que a camisa finalmente despedida
– ah as histórias que a gente inventa
para não ter de falar da viabilidade da vida.
Ou é nos intervalos do silêncio
que se rompem os vidros da janela
onde estivemos com ideias de voltar?
E não voltámos não revimos nunca mais
esse quarto de cama essa cama de quarto
esses bonecos espintalgados na parede.
Na parede branca. E havia a janela.
E o tecto era baixo e estava-se bem
ali certamente no outro dia de manhã
longe dos homens com aquele corpo
com aqueles olhos da desperdiçada rapariga.
E hoje é isto. Vaga recordação de natais que se perderam
olhos e lâmpadas ruas de cidade onde passámos
muito brevemente numa janela de comboio de viagem.


À HORA DO CAFÉ

Há salgueiros na margem e um rio sobe nas tuas pernas,
a planície começa na lenta rampa do teu seio.
Os peixes jovens exploram a areia,
conserva a montanha suave o segredo da solidão.
É não provocar no sangue que corre sobressaltos
enormes que é melhor. Mas a inocente
violência da infância tão cedo terminada,
a exigência áspera dos ossos dos joelhos?
Antes de ires, desconhecida, olha para mim.
Como se te bastasse estar ao meu lado no cinema
ou fôssemos depois de amanhã passear à tarde no campo.
Antes de partires, e nunca mais te verei,
de me pores, como à carne quase crua e doce, de lado
na tua memória.


(de O Ruído Fino, in A Jovem Poesia Portuguesa / 1, Limiar, 1979 – Os Olhos e a Memória)

27.4.09

O Beato Nuno



Vi hoje o filme de João Pinto Nogueira, U OMÃI QE DAVA PULUS
[morreu no sábado passado – ver notícia aqui]

TOMÁS JORGE

PETRÓLEO


Afinal aqueles imbondeiros
Paquidermes de raízes e flores
Soldados fantasmas
Eram os guardas verdadeiros
Permanentes e firmes
Aos ventos e aos calores
Por sobre um tesouro milenário.

Guardaram com os seus braços levantados
E seus corpos dilatados
Ocupando
Todo o areal enorme
Imenso
Como fantoches disfarçados
Afugentando os homens
Com os seus corpos feios
Blindados de chumbo.

Afinal aqueles imbondeiros
São os guardas que foram vencidos
Todos
Quase todos serão sepultados
Sobre eles cairão
As torres de ferro e de triunfo.

Um novo poema em gritos de luz e de força
Surgirá das profundidades do vasto areal
Haverá mais trabalho e felicidade
Em nova fase de visões e fatalidades.

Eu como poeta
Dono da fantasia e da realidade
Dono de tudo sem querer nada
Em novos Cânticos sociais e humanos
Cantarei humanamente
A minha terra e o meu petróleo.

(de Areal, Colecção Imbondeiro, 1961)

26.4.09

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

[excerto de] FLOR DA ROSA

Na passagem do século XIII para o século XIV, D. Gonçalo Pereira teve filhos e filhas que não interessam para a chegada, até nós, da fundação do mosteiro da Flor da Rosa. Mas houve um filho que teve o seu exacto nome, Gonçalo Pereira, e que foi arcebispo de Braga. Este arcebispo um outro filho teve, Dom frei Álvaro Gonçalves Pereira, que foi prior do Hospital e que depois de ter vivido na sede da sua ordem, na ilha de Rodes, viria a erguer a igreja de Santa Maria da Flor da Rosa. Igreja, mosteiro e fortaleza ficam nas proximidades do Crato. Entre filhos e filhas, em número superior a trinta, ele seria o pai de D. Nuno Álvares Pereira, segundo o capítulo inicial da «Coronica do Condestabre».
(…)

(in A Flor da Rosa, Relógio d’Água editores, 2000)



MÁRIO BEIRÃO

NUN'ÁLVARES


Senhor! Por mim, teu espírito visita
O Reino onde servi como soldado,
Por ti, meu coração alevantado,
Por ti, este burel de carmelita!

A humilde cela que o teu filho habita
É um cárcere de lágrimas banhado;
Condoa-se do olhar do emparedado,
A luz desses teus olhos, infinita!

Senhor, perdoa ao monge arrependido
Se ainda não mereço a tua dor,
Reduz-me à escuridão do eterno olvido!

Soberbo eu fui, perdoa ao vencedor,
Ao vencedor dos homens, - o vencido
Por teu pranto humaníssimo, Senhor!

(de Lusitânia, 1917 / 2ª edição: Livraria Tavares Martins, 1964)



ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

EXORTAÇÃO FRENTE À ESTÁTUA DO CONDESTÁVEL NA BATALHA



Para Mário Saraiva


Cavalga no bronze da glória
À ilharga do túmulo real,
Aqui, onde ficou, em pedra e fé, memória
Da mais vital vitória
De Portugal.

E ergue a espada nua. (Em certo dia
Bastara meia espada
Para enfrentar a cobardia
E vencer a batalha antes de começada.)

E o peito ovante oculta, floreada,
A cruz do seu brasão:
Como a sua alma e coração (branca e encarnada),
É divina divisa devotada
Ao Mestre, ao Rei e ao Irmão.

E olha o céu, caminho seu, seguro,
Pois sabe que no céu tudo se escoa
E Deus é sempre o futuro,
O último senhor do ceptro e da coroa.

Ó português que passas, indiferente,
Frente à estátua do Santo, do Herói:
Não te dói o presente?
A tua pátria doente
Não te dói?

Não sentes o desejo, o ímpeto de orar
Àquele que nos foi o salvador;
Pedir-lhe para regressar,
Formar quadrado contra o agressor?

De ter de novo como Capitão,
Por Deus e Pátria e Rei, o Herói, o Santo?
E de poder dizer altivamente não,
Seguindo o seu pendão,
Onde arde a esperança que perdeste há tanto?

Ah, se não queres marchar, em som de guerra,
Tal como ele, por um ideal,
É que não vale a pena o sangue, a terra,
E morre Portugal.

(de Estado Estacionário, edições Cultura Monárquica, 1988)