8.6.07

HERBERTO HELDER

Texto 1


Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão
da voz
a insinuação de um gesto uma temperatura
à sua extraordinária desordem preside um pensamento
melhor diria «um esforço» não coordenador (de modo algum)
mas de «moldagem» perguntavam «estão a criar moldes?»
não senhores para isso teria de preexistir um «modelo»
uma ideia organizada um cânone
queremos sugerir coisas como «imagem de respiração»
«imagem de digestão»
«imagem de dilatação»
«imagem de movimentação»
«com as palavras?» perguntavam eles e devo dizer que era
uma pergunta perigosa um alarme colocando para sempre
algo como o confessado amor das palavras
no centro
não tentamos criar abóboras com a palavra «abóboras»
não é um sentido propiciatório da linguagem
introduzimos furtivamente planos que ocasionais
ocupações («des-sintonizar» aberto o caminho
para antigas explicações «discursos de discursos de discursos» etc.)
fixemos essa ideia de «planos»
podemos admiti-los como «uma espécie de casas»
ou «uma espécie de campos»
e então evidente para serem habitados percorridos gastos
será que se pretende ainda identificar «linguagem» e «vida»?
uma vez se designou mão para que a mão fosse
uma vez o discurso sugeriu a mão para que a mão fosse
uma vez o discurso foi a mão
partia-se sempre de um entusiasmo arbitrário
era esse o «espírito» o «destino» da linguagem
agora estamos a ver as palavras como possibilidades
de respiração digestão dilatação movimentação
experimentamos a pequena possibilidade de uma inflexão quente
«elas estão andando por si próprias!» exclama alguém
estão a falar a andar umas com as outras
a falar umas com as outras
estão lançadas por aí fora a piscar o olho a ter inteligência
para todos os lados
sugerindo obliquamente que se reportam
a um novo universo ao qual é possível assistir
«ver»
como se vê o que comporta uma certa inflexão
de voz
é uma espécie de cinema das palavras
ou uma forma de vida assustadoramente juvenil
se calhar vão destruir-nos sob o título
«os autómatos invadem» mas invadem o quê?

(de Antropofagias, in Poesia Toda, Assírio & Alvim, 1996 - este poema surgiu inicialmente, datado de "Luanda, 14.Set.71", no n.º 2 da revista Caliban, de Lourenço Marques, em Novembro de 1971)

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